Carla Furtado Ribeiro, "Fosses uma deserta praia"




Fosses uma deserta praia ou uma terra nua 


Ou um lago esquecido uma face da lua 

A menos iluminada a mais crua 

Ainda assim ainda assim ...


Fosses um fogo apagado uma noite fria 

Uma pedra disforme um abismo 

Uma lança uma espada ou uma arma disparada 

Ao vazio do céu à máscara da vida 

Ainda assim ainda assim ...


Te tomaria ao nevoeiro da noite à bruma do dia 

E num esgar do tempo ou num recanto 

Ainda que imperfeito de harmonia 

Eu te amaria eu te amaria eu te amaria...

Lançamos o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.


Mia Couto
Dito do meu avô Celestiano
in Mar Me Quer






Carla Furtado Ribeiro, "Aguarela"


João Brum, Aguarelas

AGUARELA

Queria ser uma aguarela
Esboçada sobre uma tela
Pintura de encantar



Queria ser filha do tempo
Divagar em pensamento
Com ele ir nele voltar



Queria ser visão fugaz
Que se esvai mas que se traz
No coração



Queria ser uma guitarra
Um fado uma tricana
Capa preta uma canção



E queria ser a saudade
Para chorar à vontade
Tons que trago em mim



Queria se a eternidade
O não - ser a imensidade
Desse olhar terno cetim



Mas, queria ser também a flor
O perfume redentor
De promessas ao luar



Rosa jasmim amor-perfeito
Ser a flor que nesse peito
Lembra amor a quem amar



- Ser o amor que neste peito
Lembra, flor, por quem esperar...




A. Botto, "Se fosses luz, serias a mais bela"


[Quadro de Rafal Olbinski 


Se fosses luz serias a mais bela 
De quantas há no mundo: — a luz do dia! 
— Bendito seja o teu sorriso 
Que desata a inspiração 
Da minha fantasia! 
Se fosses flor serias o perfume 
Concentrado e divino que perturba 
O sentir de quem nasce para amar! 
— Se desejo o teu corpo é porque tenho 
Dentro de mim 
A sede e a vibração de te beijar! 
Se fosses água, música da terra, 
Serias água pura e sempre calma! 
— Mas de tudo que possas ser na vida 
Só quero, meu amor, que sejas alma!



Excertos gloriosos

"Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha vida, [inclusive o porquinho-da-índia que me deram quando eu tinha seis anos]"
Manuel Bandeira

Excertos dolorosos

"Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude... Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que eu não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais."
Clarice Lispector

Clarice Lispector, "Meu Deus, me dê a coragem"


Rafal Olbinsky
Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios da Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em Teus braços
o meu pecado de pensar.



E lança um olhar num livro que amas. Começa assim um dia belo e útil


Bertolt Brecht

Ninho de Pedra e um poema para minha mãe



[Para minha Mãe]


A ti que me diste tu vida,
tu amor y tu espacio.
A ti que cargaste en tu vientre dolor y cansacio. 
A ti que peleaste con uñas y dientes 
valiente en tu casa y en cualquier lugar
a ti rosa fresca de abril
a ti mi fiel querubín.
A ti te dedico mis versos, mi ser mis victorias
a ti mis respetos, Señora, Señora, Señora
A ti mi guerrera invencible,
a ti luchadora incansable
a ti mi amiga constante de todas las horas.
Su nombre es un nombre común
como las margaritas
siempre en mi boca presencia
constante en mi mente
Y para no hacer tanto alarde
Esa Mujer de quien hablo 
 
es linda mi amiga Gaviota, 
 
Su nombre es: MI MADRE

*
(Busca-se a autoria deste poema.)


Maria Bethânia canta "Luz da Cidade"




A luz da cidade cintila
O palco é a rua deserta
Aberta, tranqüila
A mesma voz a cantar
...
Estive em cada solidão
Em forma de canção
Espalhei-me no ar


Roberto Mendes, Jorge Portugal

Fernando Pessoa (Ricardo reis), "Segue o teu destino"



Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Eugénio de Andrade, "As mãos"




Que tristeza inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade, "As Mãos e os Frutos"



Franck Owiak, The Gardener's Hands

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Carla Furtado Ribeiro, "Portugal"




PORTUGAL

Não suporto estes flautistas de Hamelin
que não ouvem a gritar a sua bandeira
aquela que é tão feita de verdade
a que jurou ser nossa a vida inteira

Mas mais odeio os profetas da desgraça
trovador sou de almas verdes a cantar
canto o hino de um povo que não vende
o orgulho que lhe sangra sem parar

Esse orgulho que lhe sangra sem parar
é seiva lusitana genuína
viriatos somos todos, todos temos
a profundeza d’alma a forma fina

É sempre em teu regaço que repouso
somente o teu céu me faz sonhar
mas se algum dia te perder, meu Portugal
é porque já não sou eu vem- me buscar

E és tu portugal meu bem-querer
aquele que eu canto sentidamente
e nas trovas de amor só tu o sabes
é a ti que me declaro sempre, sempre



Carla Furtado Ribeiro, "Homem prosaico"

Clairvoyance (Self-Portrait), 1936
HOMEM PROSAICO

O riso ternura dos teus lábios aceno
O perfume cristal do teu pescoço gazela
O cálice tempo que a tua força sustenta
Por sobre a mesa

A face branca do teu rosto luar
O vibrar filigrana do teu olhar crepúsculo
A gravata atadura que o teu colarinho prende
Sobre a camisa

O movimento distinto dos teus ossos alabastro
A cadência musical da tua respiração pássaro
Os botões de punho ouro com que distingues
A tua prosaica existência

O domesticado ondulante do teu cabelo mar
A ajeitada selva da tua barba amazónia
O aftershave subjecticida, auto-repelente com que abafas
A tua identidade

O sonho defraudado da tua juventude bandeira
A lágrima chuva dos teus olhos céu
O coração puído que te recorda a distância
De ti próprio

*

Feliz Páscoa





Não me movimenta, meu Deus, para querer-Te
O céu que me havias prometido;
Nem me movimenta o inferno tão temido,
Para deixar por isso de ofender-Te.

Tu me movimentas, Senhor!
Movimenta-me o ver-Te
Cravado em uma cruz e escarnecido!
Movimenta-me o ver Teu corpo tão ferido.
Movimenta-me Tuas afrontas e Tua morte.
Movimenta-me, enfim, Teu amor de tal maneira,

Que, ainda que não houvesse céu, eu Te amaria,
E, ainda que não houvesse inferno Te temeria.
Não tens que dar-me nada porque Te amo,
Porque, ainda enquanto espero não esperaria,
O mesmo que Te amo Te amaria.


(Anónimo, Séc. XVI)

Simplicidade




Poema de Matilde Rosa Araújo oferecido pela minha mãe, neste dia, ao acaso...




- Mãe! O mundo é mau,
Torna a flor num lodo
E o pássaro num verme,
E eu não sabia...

- Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo. 

E saberás! 


"Vida" de Matilde Rosa Araújo

(Obrigada Mãe!)

Noite de estrelas e em cada estrela uma noite dançando ternamente a melodia do fim de todas as coisas


Carla Furtado Ribeiro




Descem sobre mim as colinas da noite, as pálpebras pesadas do dia sobrevivido. Faltam palavras para dizer a escuridão... o sonho ...chegou a hora do sonho...


Carla Furtado Ribeiro


Spirit of the Night (1879) by John Atkinson Grimshaw 

Carla Furtado Ribeiro, "Metamorfose"



METAMORFOSE

é na água dos teus olhos que me nascem
as palavras de gelo com que esculpo
a tua antevisão inexplorada 

se não fosse o silêncio percutido do nada 

um hiato atravessou-nos na esfera do tempo
como crisálida desfiando a madrugada
e nós cedemos à metamorfose inesperada

Carla Furtado Ribeiro, "Vozes do Mar"

Acompanho-te
À beira do mar
Onde o vento esmaga
Gotas de água contra a terra
Num temporal de fúria.

Que te deu para passeares
À beira deste mar enfurecido
Quando o céu chove
Como quem chora
Em desalmada tristeza…?

Deveras, a melancolia não é uma doença…
Mas, um remédio contra a lucidez…
Sim. Contra a sobreexistência de alguns vivos…

Segredo-te



Segredo ao teu ouvido 
O silêncio das manhãs enfeitiçadas por luz 
E tu segues o meu olhar como quem busca um Deus 
Eu não profetizo a beleza que te conto 
Vejo-a como quem acredita no vento, 
E na existência do amor 
Vejo-a como quem acredita no Tempo...
(Que tudo purifica...)
Segredo ao teu ouvido 
O silêncio dos nenúfares a vogar 
E sei que não entendes, 
Porque para ti as flores não têm alma 
Mas eu digo que nós somos a alma das coisas 
O términus de todos os significados 
Em nós desagua o simbolismo da vida 
Não há quem entenda 
Eu segredo ao teu ouvido 
Não porque entendas, 
Mas para que entendas 
Eu segredo-te 
As metáforas imprecisas 
Dos motivos e dos porquês 
E tu debruças-te como se 
Pela primeira vez 
Sobre o lago da existência. 
Mas a essencial pergunta não te ocorre: 
Não vês que é no vagar e no silêncio que se morre? 
Não vês que sou eu que não entendo? 
Não vês que eu sou uma pergunta irretratável? 
Não vês que eu não tenho respostas?
Por isso me nutro de beleza e de silêncio:
- As únicas coisas do mundo que não precisam explicação,
  espelhos que são a minha casa.

Carla Furtado Ribeiro, "Aldeia"


ALDEIA

A minha aldeia é uma história de silêncio
Solene, hierático, intenso
ora altivo, ora raro, ora denso
De que as coisas se pressentem povoadas

Um silêncio de brisas transpiradas
Pelos corpos de chão, de terra, de semente
E de tudo o que no Homem faz presente
O mistério das coisas, insondável

A aldeia é rua de memórias apeadas
Bordadas a vidrilhos de luar
um jardim de angemas perfumadas
De um perfume impossível de expressar

São memórias e visões revisitadas
Em cada pedra, em cada tronco, 
Em cada espiga de milho, 
Em cada olhar de desfolhada
Que nos fere de emoção, aldeia amada
Que nos deixa o coração a soluçar.


[poema musicado pela autora]