Maria Bethânia canta "Luz da Cidade"




A luz da cidade cintila
O palco é a rua deserta
Aberta, tranqüila
A mesma voz a cantar
...
Estive em cada solidão
Em forma de canção
Espalhei-me no ar


Roberto Mendes, Jorge Portugal

Fernando Pessoa (Ricardo reis), "Segue o teu destino"



Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Eugénio de Andrade, "As mãos"




Que tristeza inútil essas mãos
que nem sempre são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade, "As Mãos e os Frutos"



Franck Owiak, The Gardener's Hands

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Carla Furtado Ribeiro, "Portugal"




PORTUGAL

Não suporto estes flautistas de Hamelin
que não ouvem a gritar a sua bandeira
aquela que é tão feita de verdade
a que jurou ser nossa a vida inteira

Mas mais odeio os profetas da desgraça
trovador sou de almas verdes a cantar
canto o hino de um povo que não vende
o orgulho que lhe sangra sem parar

Esse orgulho que lhe sangra sem parar
é seiva lusitana genuína
viriatos somos todos, todos temos
a profundeza d’alma a forma fina

É sempre em teu regaço que repouso
somente o teu céu me faz sonhar
mas se algum dia te perder, meu Portugal
é porque já não sou eu vem- me buscar

E és tu portugal meu bem-querer
aquele que eu canto sentidamente
e nas trovas de amor só tu o sabes
é a ti que me declaro sempre, sempre



Carla Furtado Ribeiro, "Homem prosaico"

Clairvoyance (Self-Portrait), 1936
HOMEM PROSAICO

O riso ternura dos teus lábios aceno
O perfume cristal do teu pescoço gazela
O cálice tempo que a tua força sustenta
Por sobre a mesa

A face branca do teu rosto luar
O vibrar filigrana do teu olhar crepúsculo
A gravata atadura que o teu colarinho prende
Sobre a camisa

O movimento distinto dos teus ossos alabastro
A cadência musical da tua respiração pássaro
Os botões de punho ouro com que distingues
A tua prosaica existência

O domesticado ondulante do teu cabelo mar
A ajeitada selva da tua barba amazónia
O aftershave subjecticida, auto-repelente com que abafas
A tua identidade

O sonho defraudado da tua juventude bandeira
A lágrima chuva dos teus olhos céu
O coração puído que te recorda a distância
De ti próprio

*