Fernando Pessoa, "Foi Um Momento"


Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há uma coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

A LUVA DE RICARDO

flor

Meu avô era poeta
Que enquanto escrevia, despia
A alma de desventuras…
Ao coldre tinha uma arma
Mas consta que
Não tinha armadura…
Por vezes sonhava sonhos
De gente simples, feliz…
Mas por dura cerviz
Foi proibido.
E em póstuma revolução
(E derradeira!)
Fez -se morrer rente ao chão
Em rasa simplicidade!
Meu avô… meu avô…
Era um poeta…
Que enquanto escrevia, despia
A alma de desventuras…
…E a herança de sua neta
Foi esta dor de poeta
Foi esta amarga doçura
E ainda a ausência que trago
Da sua ignota ternura.

Jorge Luis Borges, "Poema dos Dons"


Graças quero dar ao Divino
Labirinto dos efeitos e das causas
Pela diversidade das criaturas
Que formam este singular universo,
Pela razão, que não cessará de sonhar
Com um plano para o labirinto,
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
Pelo amor que nos deixa ver os outros
Tal como os vê a divindade,