As que procurei em vão, principalmente as que estiveram muito perto, como uma respiração, e não reconheci, ou desistiram e partiram para sempre, deixando no poema uma espécie de mágoa como uma marca de água impresente; as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te nem foram capazes de dizer-me; as que calei por serem muito cedo, e as que calei por serem muito tarde, e agora, sem tempo, me ardem; as que troquei por outras (como poderei esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?); as que perdi, verbos e substantivos de que por um momento foi feito o mundo e se foram levando o mundo. E também aquelas que ficaram, por cansaço, por inércia, por acaso, e com quem agora, como velhos amantes sem desejo, desfio memórias, as minhas últimas palavras.
Devia morrer-se de outra maneira. Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens. Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio". E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!" E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão subtil... tão pòlen... como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...
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Viver sempre também cansa! O sol é sempre o mesmo e o céu azul ora é azul, nitidamente azul, ora é cinza, negro, quase verde... Mas nunca tem a cor inesperada. O Mundo não se modifica. As árvores dão flores, folhas, frutos e pássaros como máquinas verdes. As paisagens também não se transformam. Não cai neve vermelha, não há flores que voem, a lua não tem olhos e ninguém vai pintar olhos à lua. Tudo é igual, mecânico e exacto. Ainda por cima os homens são os homens. Soluçam, bebem, riem e digerem sem imaginação. E há bairros miseráveis, sempre os mesmos, discursos de Mussolini, guerras, orgulhos em transe, automóveis de corrida... E obrigam-me a viver até à Morte! Pois não era mais humano morrer por um bocadinho, de vez em quando, e recomeçar depois, achando tudo mais novo? Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses, morrer em cima dum divã com a cabeça sobre uma almofada, confiante e sereno por saber que tu velavas, meu amor do Norte. Quando viessem perguntar por mim, havias de dizer com teu sorriso onde arde um coração em melodia: "Matou-se esta manhã. Agora não o vou ressuscitar por uma bagatela." E virias depois, suavemente, velar por mim, subtil e cuidadosa, pé ante pé, não fosses acordar a Morte ainda menina no meu colo...
Voz o vento passando entre poeira Edifício Árvore noutro poema Fico à sombra da vide e do esteio no Outono E enxerto a luz em tudo o que nomeio Daniel Faria, Poesia, Quasi Edições