Carla Furtado Ribeiro, "Miragem"



Os brilhos percorrem de noite a escuridão
na ânsia de acender manhãs
nos círios dos teus olhos claros

e é como se os próprios dias não morressem
e na cadência imperturbável
do tempo reescrevessem
o novo alfabeto

da miragem


*
@Carla Furtado Ribeiro

Carla Furtado Ribeiro, "Bilhete de Mário Ruoppolo para Beatriz"

"Il Postino", Cinema

Beatriz,

Hoje não quero sonetos
Quero desfazer poemas
Arruinar palavras ordeiras
E perfilá-las no (des)oriente da imaginação.

Beatriz,

Perfilá-las assim desperfiladamente
Porque o que eu quero mesmo
É destruir somente
A parte da palavra que não sente
Aquele pedaço de letra que desmente
A alma de quem escreve.

Beatriz,

Bem sabes… um poema
Que não tenha alinhamentos, nem pontos
Nos pensamentos, nem nos  is dos “is”igentes

Não sou uma máquina de produzir "mentáforas"
Impertinentes.

Mas, um poema assim como num futuro antigamente
Que não se sente, que de si próprio duvida e a si 
Mesmo se desmente

Um poema claro mas declaradamente
Liberto de (fitas) métricas, progredindo

Em direcção ao espaço sideral
Onde as letras mortas e as línguas antigas
Jazem em forma de estrelas.

E aí, com sua bênção estelar, desenvolver
Uma nova poética, a poética da 
Desordenação das palavras,
A poética sem métrica e sem formas,
Que é o mesmo que dizer sem rodeios…

Enfim, Beatriz,

Queria, se possível,
Um poema que nem tivesse palavras...

Como tu e como eu

Poemas que o são

Sem precisarem de ser mais nada...




                       (Mas, não prescindo de sonetos)



Adeus

Arthur Rimbaud, "Canção da Mais Alta Torre"


Arthur Rimbaud
Juventude ociosa
Escrava e submissa, 
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Com corações que se apaixonam.

Disse a mim mesmo: abandona,
E que ninguém te veja:
Nem mesmo a promessa
De alegrias mais altas.
Que nada te prenda, ou pare
Sublime retirada.

Dei tantas mostras de paciência
Que tudo eu para sempre olvide;
Temores e dores
Volatizaram-se nos céus.
Mesmo se uma sede doentia
Me obscurece as veias.

Assim o Prado
Deixado ao abandono,
Maturado e florido,
De cores-odores e ervas daninhas,
Entregue ao zumbido ensurdecedor
e cem moscas nojentas.

Ah! Mil vezes viúvo
Da trist’alma nua
Sem outra imagem
Que a da Senhora Mãe!
Será que se ora
À Virgem Maria?

Juventude ociosa
Escrava e submissa,
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Em que os corações se apaixonam.

in O Rapaz Raro. Tradução:  Maria Gabriela Llansol

Agustina Bessa-Luís


Agustina Bessa Luís

A recuperação da culpa

A Cultura Europeia encontra-se, há pelo menos seis décadas, numa situação embaraçosa. Ao serem solucionados problemas da saúde e do trabalho; ao crescerem as hipóteses e as profecias do bem-estar, o espírito criador foi sofrendo na sua raiz uma lesão profunda. A solidão, tão cara ao homem de pensamento e necessária à sua originalidade, foi sendo condenada pelo apelo à aldeia global. As fronteiras, ao caírem, produziram um fenómeno de desorientação; os mass-media, ao servirem os grandes espaços geofísicos, contribuíram para uma desmobilização do génio.
Não é de estranhar que a Cultura se tornasse uma espécie de cruzada, sem objetivos exceto os de menos alcance e que competem aos programas locais, de divulgação mais excitante. Mas o pensamento ficou bloqueado, o cérebro humano não responde aos estímulos da paixão criadora.