Leonor de Almeida, Legendas

 antologia do esquecimento: CARTA

Brisa

bruma

rasto de estrela

a tua promessa voga no espaço

sem minha mão poder retê-la!


Apagado tombou nas ameias do silêncio

o astro que criei.

Abraçando a sua sombra

retomo o caminho do meu corpo.

- Eu quis a imensidade 

tanto

que a esgotei!


Em na curva escura dos cardos do tempo, poesia reunida

Edit. Ponto de Fuga, 2020.

IN UTERO ORIGINALI

Sou da forma liquefeita das águas.
Maré que recua à concha inicial.
Em mim colho as redes
Da pesca abundante
Das palavras
E sinto o ardor do sal
Na língua das marés
E o âmago tisnado
Pelo sol que doira
Nas embarcações.

E é sempre um mar de prata
Que se ergue no horizonte em que
Silenciosa divago, submergida
No espanto e no mistério
De assim ser e estar:
In utero originali


CARLA FURTADO RIBEIRO in LETRAS CON\VIDARevista de Literatura, Cultura e Arte, Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa, 2017


Carla Furtado Ribeiro, Atravesso tempos como rios



Atravesso o tempo como rios atravessam leitos
Em pasmos alternados de alegria e lassidão 
E na perfeição da água sou apenas
Gota oferecida ao sacrifício da terra
Rebrilhando 
                           atónita 
                                           no lago da imensidão




Carla Furtado Ribeiro, O poema dorme no silêncio

Theo, Dapore Painting
O poema dorme no silêncio e depois
Sobe devagar às fontes do esquecimento
Até que te recordes das palavras e as
Destiles em versos caudalosos
De assombro ou de ternura.

E pede-te que sangres as palavras
E delas colhas as raízes do que existe:
As amoras nas polpas dos teus dedos,

As bagas das romãs ruborizando a terra,
A dança inocente dos noivos prometidos,
As ondas vagueando na sua paz austera,
Os cavalos eriçando suas crinas voluptuosas
E a vida trespassada de rotinas imperiosas

E o poema emerge da comunhão
Do poeta com a amorfa voracidade dos dias
E é raiz e caule que sustém o mundo nas
Palavras sem as quais o mundo nem sequer existiria



Carla Furtado Ribeiro, Terra da Alegria

Para Ruy Belo.


Vê que singeleza há na aurora
Que irrompe defronte da janela
(Singela e trágica
Em cores esvaindo-se)
Inundando de claridade a terra inteira

Traz falas da noite - a insondável…-
Quando emerge vem pesada
Vem secreta
Reinar – e reina! – sobre a Terra da Alegria...


Exegese Literária acerca do livro de poesia “Em Silêncio”, por Doutor Martinho Soares.


Exegese Literária acerca do livro de poesia “Em Silêncio” de Carla Furtado Ribeiro, Chiado Editora, Lisboa, 2013.

Dizer muito com poucas palavras é próprio da poesia. A estratégia poética reside, em grande medida, no poder de síntese, na capacidade de concentrar num símbolo verbal um feixe de sentidos, na mestria com se reveste de opacidade e ambiguidade, abrindo ao leitor múltiplas vias de sentido. Tudo isto contribui para que a poesia lírica resulte parca nos significantes e prolixa nos significados. E é porque ela é por natureza mais implícita do que explícita, que o poema procura mais sugerir do que definir, implicar do que explicar. Implica o leitor: o seu campo de experiências e o seu horizonte de expetativas, a sua cultura sedimentada e o seu dinamismo interpretativo. A poesia, como resultado da perceção e contemplação do quase invisível e do universal, oculto no sensível e no particular, não pode ser ostensiva: a sua polpa guarda o mistério, o quase indizível, o âmago dos seres e das circunstâncias. Eis porque o silêncio devém matéria matricial dos poemas. Basta olharmos para a poesia portuguesa contemporânea para percebermos um certo fascínio pelo tema; muitas vezes apresentado em tons disfóricos, com traços de ceticismo, mutismo, descrença, se não mesmo de indiferença e neutralidade. Não assim o silêncio entre parêntesis retos da Carla Furtado Ribeiro. Dentro dos parêntesis retos germina um silêncio criativo e criador, ativo e meditativo, em cujas margens se propicia a palavra poética que a autora cultiva com primorosa paixão e acrisolada sensibilidade estética.
Em silêncio é o título que marca a estreia fulgurante e muito promissora desta jovem poetisa, que é simultaneamente mulher de letras e de leis.

Carla Furtado Ribeiro, "Tu Minha Árvore Sem Nome"

Klint, painting


TU MINHA ÁRVORE SEM NOME 
Tu
minha árvore sem nome, história sem tempo
meu leito de abandono e deserção, 
Raiz
Adventícia da esplendorosa Primavera em gestação. 
Folha
seminal, trifoliada, oval, orbicular, lobada,
folha de ouro, herança de à terra vinculada. 
Âmago
de todas as luminescências que me habitam
crepúsculos incandescentes, impossíveis que me invitam.
mas, tu, agora gota, agora água, agora arco-íris diluído em mágoa, 
agora água-régia que embriaga e dissolve em aquarelísticas imagens 
esta paz cruciforme das paisagens.
Recantos
de pureza inesperada, são teu berço, teu braço, 
teu insólito regaço, meu céu debutante e sem cansaço.

Oh natureza curvilínea,
de cíclicos e solenes retornos sobre a terra! 
Só tu,
sempre estas águas, mansamente debruçadas
sobre minhas esquivas margens escarpadas…



Carla Furtado Ribeiro, "De palavras se escreve amar"


de palavras
se escreve amar
que amar cegue
de luz palavras
que de palavras
breve escreve
o ser de não ser
senão palavras

mas se de palavras
amar se escreve
que de folhas brancas
vida leve
o que de palavras
breve
e reste apenas
o ser no ser
de existir
no princípio do Verbo
que no princípio
O era e para sempre
Ser



Sessão de Apresentação e Autógrafos em Coimbra .

O Livro de Poesia "Em Silêncio" de Carla Furtado Ribeiro, Chiado Edit. Lx. 2013, será apresentado pelo Professor Doutor Martinho Tomé Martins Soares, Mestre e Doutorado em Poética e Hermenêutica pela Universidade de Coimbra, no próximo dia 25 de Out. pelas 18h30 no emblemático Café Santa Cruz, em Coimbra.

Esta Sessão é promovida pela Bertrand Livreiros.

Convido-vos a estarem presentes.


J. L. Silva , "Os dias parecem tão iguais"


Os dias, esses pássaros amarelos,
parecem tão iguais
Parecem indiferentes ao bem e ao mal
os dias que nascem solitários 
do outro lado do círio aceso da aurora
e da vida que se debruça à janela
Um vento leve leva as palavras,
sonolentas,
sem nehum destino
É cedo para que se diga
que a vida não vale nada
É cedo para se bater à Porta da Verdade
É tarde para se apagar o antigo nome,
o antigo e inelutável sonho

Os finais de tarde apagam-se em azuis 
e dourados,
tendendo a vermelho,
mas nem por isso descuida-se do gesto
que, lentamente, trará a noite imensa
sob a sombra de uma folha,
sob o aroma dos lírios
A noite estilhaça o vítreo 
incandescente das estrelas
e o céu, suspenso por cordões de marionete,
transborda de pontinhos úmidos de azul
e de eternidades 
Pululam estrelinhas na noite 
enquanto o poema espera 
pelo sensível momento da flor,
da rosa que se desvela em arabescos
prateados pela ternura da lua

É cedo para dizer que a vida é um breve 
e irremediável sonho inútil
que põe esta lágrima nos meus olhos,
deambulando pelas velhas ruas tímidas
e inauditamente tristes
É cedo para pedir à sina (esquiva) que
leve esta tristeza que me permeia
como o perfume de sândalo e de saudades
É cedo para tentar entender a fábula
contida no vento e no orvalho
que amanhece nas folhas e nas pétalas das flores

Viestes ver a manhã que apascenta
as brancas nuvens tecidas em mármore?
Viestes ver a manhã amarela
e os campos onde sonham os girassóis?
À noite eram outros os sonhos,
densos e sincopados
Na noite retinta assomam os olhos
medievos 
esquecidos no passado
A estrela cadente resvala pelo espaço
incendiando
o céu em seus rumores de brasas
calcinando o instante, 
marchetando os sonhos 
Faço o meu pedido, contundente como
o barro da infância,
inaudito como o murmúrio das noites
e o silêncio dos caminhos intangíveis
Só a estrela me ouve...
Ao meu pedido
e ao som dolente da flauta que vinha
com as noites incertas e silentes

Só a estrela...

Em palavras de criança tudo pode ser pedido enquanto a estrela cai


--
@J. L. Silva [ Todos os direitos reservados]

As palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.

Etty Hillesum


Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner.
E de repente fiquei a saber:
é assim que eu quero escrever.
Com um espaço imenso à volta das palavras.
Detesto muitas palavras.
Quereria escrever somente palavras
organicamente inseridas num grande silêncio,

Al Berto, Diários


[…]
[Não posso continuar com coisas exteriores à minha escrita a perturbarem-me. Tenho de avançar rapidamente com o projecto que me obceca há muito. O tempo faz-se escasso.
Faz um frio de partir os ossos. Os dias cheios dum sol espantoso, uma limpidez que se vê a costa até ao Cabo Sardão. Às vezes desejaria ter sido pastor, homem transumante. Ir e regressar, com o sol e com as chuvas, ir e regressar sempre com o ciclo das estações…
Fiz 36 anos, hoje, acabaram-se para sempre algumas coisas, outras iniciam-se agora, só a juventude não se recomeça nem tem início hoje… Tenho de começar a habituar-me à grande desolação dos dias, sempre mais vazios, sem ninguém, porque assim o quis.
A partir de hoje tenho o tempo todo para escrever, para não fazer nada, envelhecerei calmamente. Tenho a certeza. Não há tempo, ainda bem!]

in «Diários», de Al Berto (11-01-1948 § 13-06-1997)

Ana Pinto, "Silêncio"


Vou dizer-te com silêncio.
Sim, silêncio, porque quando se está muito próximo
todos os sons perdem o sentido.
Nem a música,
nem a mais leve vibração te nomearia agora.

Tenho um feixe de electrões estancados
nos lábios, erradicando o erro da luz.
Poderia ter uma palavra, uma palavra pérola, pálida,
polida, porcelânica, poderia
ter um pequeníssimo sopro terso – mas não.
Precisamos do erro posterior
ao ocaso
para beber o silêncio por um copo
com o céu por abismo e a terra por céu.

Colho uma rosa à noite,
com uma colher, à voltagem e à ordem
onde se movimentam
as pétalas molhadas
do vapor da cúpula, uma rosa levemente cansada
de girar a sua cauda
e verto-a assombrosa e cuidadosamente
ao copo em fervedura azul:
Bebemos chá de rosas em silêncio.

Depois, no livro que está sempre
sobre o pano azul da mesa eu leio os versos,
tu lês os números -
E todo o oceano dos mundos
exala um perfume rubro a rosas
aquele perfume que arde sempre nas rosas
mais rubras. 

--
@Ana Pinto [Todos os direitos reservados] 

Carla Furtado Ribeiro, "Das Aves e das Manhãs"

Pintura:@Tiago Taron 

Eu sou a solene maciez do linho
A perturbante lisura das espadas
Eu sou a prenda, a pressa do caminho
Eu sou o cada dia renascer do nada

Eu sou a estreiteza imperfeita das levadas
Uma manhã de luzes sobre o trilho
De pó, de pedra, de destino. brilho.
Eu sou a intrepidez das aves mutiladas

Estranhamente eu sou e não sou, desdigo
Ser, não ser, não sei, persigo e desperto
Aqui. agora. só sei que estou contigo.



Carla Furtado Ribeiro, "Claire Matin"



CLAIRE MATIN

Sigo
rotas interiores
desenho
a tua ausência
e estou contigo
destino tatuado
em transparência
do teu ser
que me persigo

neste perigo de existir
sem desistir
me desatas e desmentes
de aparências
e no que não nasci
nasço contigo
e te amo de palavras
que não digo
mas que sabes
mas que inventas
e no que me inventas
eu me abrigo

desfaço-me de indefinições
e toda sou um rio
em uma “claire matin”
os pássaros pousando na manhã
são como seres que sobre-humanos existissem
e pressentissem o sobre-humano nós

e em penas se desfizessem cantos
em pétalas se colhessem flores
e este canto de vida é que embriaga
e no que me inventas não apaga
o que de não ter acontecido
mais se amou

desperta desse frio de ternura
e renasce de candura
… existir é brando…
… viver é puro…
e eu sou
a que no mundo
transfiguro
o pó de nada ser
no ouro precioso
das manhãs

@Carla Furtado Ribeiro, "Em Silêncio", Chiado Ed., 2013

Créditos
Poema: "Claire Matin" de Carla Furtado Ribeiro
Música : Saint Preux - Abigail
Vídeo: http://youtu.be/66o8xyy0bzw

Livro de Poesia "Em Silêncio", de Carla Furtado Ribeiro, Chiado Editora, Lisboa, 2013



Disponível, também, nas Livrarias Online em: 
(ou em qualquer Livraria perto de si, mediante encomenda).  
[Basta clicar nas ligações anteriores, para ser encaminhado/a para a Livraria Online]




SINOPSE (Excerto)

"O título - "Em Silêncio" – pretende remeter para um silêncio de timbre meditativo, que é um meio e não um fim em si próprio. Um silêncio em cujo seio é possível cultivarem-se talentos e medir- se-lhes a força e a profundidade. Um silêncio de onde brotam, afinal, senão todas as palavras, pelo menos aquelas que a autora considera as essenciais. Um silêncio criativo no qual se aperfeiçoa a arte que se deseja manifestar, e que não é a ausência de nada, mas, antes, a presença de tudo quanto de belo se possa admirar, cultivar e expressar. Finalmente, é, também, um silêncio Habitado pelo que de mais elevado nos inspira e a que poderemos chamar Deus, Amor ou, simplesmente… Silêncio. " A autora.

"Da mais alta janela de minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos
Que partem para a humanidade"

Fernando Pessoa

Jorge de Sena, "Como queiras, Amor..."

Magritte, Painting
Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.


Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

Rainer Maria Rilke, "O Homem que Contempla"

Rainier Maria Rilke

O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas lhe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem


à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.


O Fruto

Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.

Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.

E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.

Tomas Tranströmer , Poema

...
Não há vazios por aqui.
É fantástico sentir como cresce o meu poema
enquanto me vou encolhendo
Cresce, ocupa o meu lugar.

Desloca-me.
Expulsa-me do ninho.
O poema está pronto.

Herberto Helder, "Tríptico"

Miró, "Swallow Love"

I
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.

E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher

que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito

de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.

(in Ofício Cantante) 


---
VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto 
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. 
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo 
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina 
os meus espinhos frios,
a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue 
da terra nocturna.

Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas, 

bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
E uma coisa estupenda a primavera que trabalha 
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. 
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água 
atenta, e amo a loucura — 
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.

Tenho medo de erguer a voz mais alto 

que o meu coração onde uma candeia 
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. 
Que a tristeza me ajude, que me ajudem

os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, 

todos os mortos, todos os que amam 
entre sangue no mundo, entre as águas 
das noites eternas.

Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — 

e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, 
fundo-me no verbo interior da primavera 
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. 
Cantavas o que já se não quebra com o uso 
das vozes. Porque tu eras a minha 
água salgada.

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam 

e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. 
Primavera, como cresces.
Desespero ou alegria, como correm 
nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, 
evocar tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite 
com uma porta no coração para passar 
num tremendo silêncio.

Ressuscitar uma vez com a cara extrema 

junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras 
evaporam-se, reaparecem em espírito 
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.

Falo tão devagar que mal distingo 

a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam 
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar — como quem ressuscita.


In Ou o Poema Contínuo, São Paulo: A Girafa Editora, 2006, pp. 87-89

Paul Eluard, A Morte o Amor a Vida"

Chagall, "Cantique"


Julguei que podia quebrar a profundeza a imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue

Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula

Tu vieste o fogo então reanimou-se
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de estrelas

E a terra cobriu-se
Da tua carne clara e eu senti-me leve
Vieste a solidão fora vencida
Eu tinha um guia na terra
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido
Avançava ganhava espaço e tempo
Caminhava para ti dirigia-me incessantemente para a luz
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava
O sono transbordava de sonhos e a noite
Prometia à aurora olhares confiantes
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos
O repouso deslumbrado substituía a fadiga
E eu adorava o amor como nos meus primeiros tempos

Os campos estão lavrados as fábricas irradiam
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas
Nada é simples nem singular
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite

A floresta dá segurança às árvores
E as paredes das casas têm uma pele comum
E as estradas cruzam-se sempre
Os homens nasceram para se entenderem
Para se compreenderem para se amarem
Têm filhos que se tornarão pais dos homens
Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens
E a natureza e a sua pátria
A de todos os homens
A de todos os tempos.

Algumas Palavras, tradução de António Ramos Rosa