As palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.

Etty Hillesum


Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner.
E de repente fiquei a saber:
é assim que eu quero escrever.
Com um espaço imenso à volta das palavras.
Detesto muitas palavras.
Quereria escrever somente palavras
organicamente inseridas num grande silêncio,

Al Berto, Diários


[…]
[Não posso continuar com coisas exteriores à minha escrita a perturbarem-me. Tenho de avançar rapidamente com o projecto que me obceca há muito. O tempo faz-se escasso.
Faz um frio de partir os ossos. Os dias cheios dum sol espantoso, uma limpidez que se vê a costa até ao Cabo Sardão. Às vezes desejaria ter sido pastor, homem transumante. Ir e regressar, com o sol e com as chuvas, ir e regressar sempre com o ciclo das estações…
Fiz 36 anos, hoje, acabaram-se para sempre algumas coisas, outras iniciam-se agora, só a juventude não se recomeça nem tem início hoje… Tenho de começar a habituar-me à grande desolação dos dias, sempre mais vazios, sem ninguém, porque assim o quis.
A partir de hoje tenho o tempo todo para escrever, para não fazer nada, envelhecerei calmamente. Tenho a certeza. Não há tempo, ainda bem!]

in «Diários», de Al Berto (11-01-1948 § 13-06-1997)

Ana Pinto, "Silêncio"


Vou dizer-te com silêncio.
Sim, silêncio, porque quando se está muito próximo
todos os sons perdem o sentido.
Nem a música,
nem a mais leve vibração te nomearia agora.

Tenho um feixe de electrões estancados
nos lábios, erradicando o erro da luz.
Poderia ter uma palavra, uma palavra pérola, pálida,
polida, porcelânica, poderia
ter um pequeníssimo sopro terso – mas não.
Precisamos do erro posterior
ao ocaso
para beber o silêncio por um copo
com o céu por abismo e a terra por céu.

Colho uma rosa à noite,
com uma colher, à voltagem e à ordem
onde se movimentam
as pétalas molhadas
do vapor da cúpula, uma rosa levemente cansada
de girar a sua cauda
e verto-a assombrosa e cuidadosamente
ao copo em fervedura azul:
Bebemos chá de rosas em silêncio.

Depois, no livro que está sempre
sobre o pano azul da mesa eu leio os versos,
tu lês os números -
E todo o oceano dos mundos
exala um perfume rubro a rosas
aquele perfume que arde sempre nas rosas
mais rubras. 

--
@Ana Pinto [Todos os direitos reservados] 

Carla Furtado Ribeiro, "Das Aves e das Manhãs"

Pintura:@Tiago Taron 

Eu sou a solene maciez do linho
A perturbante lisura das espadas
Eu sou a prenda, a pressa do caminho
Eu sou o cada dia renascer do nada

Eu sou a estreiteza imperfeita das levadas
Uma manhã de luzes sobre o trilho
De pó, de pedra, de destino. brilho.
Eu sou a intrepidez das aves mutiladas

Estranhamente eu sou e não sou, desdigo
Ser, não ser, não sei, persigo e desperto
Aqui. agora. só sei que estou contigo.



Carla Furtado Ribeiro, "Claire Matin"



CLAIRE MATIN

Sigo
rotas interiores
desenho
a tua ausência
e estou contigo
destino tatuado
em transparência
do teu ser
que me persigo

neste perigo de existir
sem desistir
me desatas e desmentes
de aparências
e no que não nasci
nasço contigo
e te amo de palavras
que não digo
mas que sabes
mas que inventas
e no que me inventas
eu me abrigo

desfaço-me de indefinições
e toda sou um rio
em uma “claire matin”
os pássaros pousando na manhã
são como seres que sobre-humanos existissem
e pressentissem o sobre-humano nós

e em penas se desfizessem cantos
em pétalas se colhessem flores
e este canto de vida é que embriaga
e no que me inventas não apaga
o que de não ter acontecido
mais se amou

desperta desse frio de ternura
e renasce de candura
… existir é brando…
… viver é puro…
e eu sou
a que no mundo
transfiguro
o pó de nada ser
no ouro precioso
das manhãs

@Carla Furtado Ribeiro, "Em Silêncio", Chiado Ed., 2013

Créditos
Poema: "Claire Matin" de Carla Furtado Ribeiro
Música : Saint Preux - Abigail
Vídeo: http://youtu.be/66o8xyy0bzw

Livro de Poesia "Em Silêncio", de Carla Furtado Ribeiro, Chiado Editora, Lisboa, 2013



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SINOPSE (Excerto)

"O título - "Em Silêncio" – pretende remeter para um silêncio de timbre meditativo, que é um meio e não um fim em si próprio. Um silêncio em cujo seio é possível cultivarem-se talentos e medir- se-lhes a força e a profundidade. Um silêncio de onde brotam, afinal, senão todas as palavras, pelo menos aquelas que a autora considera as essenciais. Um silêncio criativo no qual se aperfeiçoa a arte que se deseja manifestar, e que não é a ausência de nada, mas, antes, a presença de tudo quanto de belo se possa admirar, cultivar e expressar. Finalmente, é, também, um silêncio Habitado pelo que de mais elevado nos inspira e a que poderemos chamar Deus, Amor ou, simplesmente… Silêncio. " A autora.

"Da mais alta janela de minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos
Que partem para a humanidade"

Fernando Pessoa