Rainer Maria Rilke, "O Homem que Contempla"

Rainier Maria Rilke

O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas lhe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem


à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.


O Fruto

Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.

Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.

E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.




Vejo que as tempestades vêm aí 
pelas árvores que, à medida que os dias se tornam mornos, 
batem nas minhas janelas assustadas 
e ouço as distâncias dizerem coisas 
que não sei suportar sem um amigo, 
que não posso amar sem uma irmã. 

E a tempestade rodopia, e transforma tudo, 
atravessa a floresta e o tempo 
e tudo parece sem idade: 
a paisagem, como um verso do saltério, 
é pujança, ardor, eternidade. 

Que pequeno é aquilo contra que lutamos, 
como é imenso, o que contra nós luta; 
se nos deixássemos, como fazem as coisas, 
assaltar assim pela grande tempestade, — 
chegaríamos longe e seríamos anónimos. 

Triunfamos sobre o que é Pequeno 
e o próprio êxito torna-nos pequenos. 
Nem o Eterno nem o Extraordinário 
serão derrotados por nós. 
Este é o anjo que aparecia 
aos lutadores do Antigo Testamento: 
quando os nervos dos seus adversários 
na luta ficavam tensos e como metal, 
sentia-os ele debaixo dos seus dedos 
como cordas tocando profundas melodias. 

Aquele que venceu este anjo 
que tantas vezes renunciou à luta. 
esse caminha erecto, justificado, 
e sai grande daquela dura mão 
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta. 
Os triunfos já não o tentam. 
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido 
por algo cada vez maior. 


in O Livro das Imagens,
Tradução de Maria João Costa Pereira

Sem comentários: