Herberto Helder, "Tríptico"

Miró, "Swallow Love"

I
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.

E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher

que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito

de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.

(in Ofício Cantante) 


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VI
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto 
à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.
Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis. 
Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo 
sem fim circunda suas raízes leves.
É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina 
os meus espinhos frios,
a lua que inclina meu sangue ligado e o sangue 
da terra nocturna.

Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas, 

bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.
E uma coisa estupenda a primavera que trabalha 
nas caveiras dos cavalos enterrados.
E os cavalos ressuscitam pela noite adiante. 
Inspiro-me na primavera com suas grutas de água 
atenta, e amo a loucura — 
a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror.

Tenho medo de erguer a voz mais alto 

que o meu coração onde uma candeia 
concentra um grande silêncio.
A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato. 
Que a tristeza me ajude, que me ajudem

os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos, 

todos os mortos, todos os que amam 
entre sangue no mundo, entre as águas 
das noites eternas.

Sinto os ossos ascenderem às cobras na cabeça — 

e a obra está nas mãos.
Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem, 
fundo-me no verbo interior da primavera 
como o vermelho se funde na flor futura.
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte. 
Cantavas o que já se não quebra com o uso 
das vozes. Porque tu eras a minha 
água salgada.

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam 

e a rutilação ascende pelas veias.
Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos. 
Primavera, como cresces.
Desespero ou alegria, como correm 
nos membros reaparecidos.
Dizer devagar na humidade da carne, 
evocar tuas colinas de sal, mistério.
Tudo em volta da primavera e da noite 
com uma porta no coração para passar 
num tremendo silêncio.

Ressuscitar uma vez com a cara extrema 

junto a líquenes inocentes.
Entre os meses saber de um só que pede
a mudez aterradora.
A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras 
evaporam-se, reaparecem em espírito 
mastigando giestas. Primavera é uma palavra
numa língua demasiado estrangeira.
Uma coisa enorme, sem música.

Falo tão devagar que mal distingo 

a noite sobre a terra
da minha garganta onde os animais passam 
lentamente inspirados.
Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,
e o sangue alimenta a loucura
devagar, devagar — como quem ressuscita.


In Ou o Poema Contínuo, São Paulo: A Girafa Editora, 2006, pp. 87-89


...

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e casta. Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos se enchem de um brilho precioso e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima, – eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram. 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço o coração é uma semente inventada em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão como se toda a minha casa ardesse pousada na noite. – E então não sei o que dizer junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas que às vezes caem no meio do tempo, – não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço – e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me falta um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer coisa extraordinária. Porque não sei como dizer-te sem milagres que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor,

que te procuram.

Herberto Helder Poesia Toda Assírio & Alvim, 1996 


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Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.



Herberto Helder in "As Musas Cegas"

1 comentário:

Unknown disse...

Surpreendentemente extraordinário!!!