Dostoiévski – "Os Irmãos Karamazov"

image
Uma análise de Dostoyevsky a partir de “Os Irmãos Karamazov”:
“"Os Irmãos Karamázov" é o último livro de Fiódor Dostoiévski, sendo considerado por muitos críticos e leitores a melhor dentre todas as suas obras. Publicado em 1880, sendo finalizado apenas pouco antes de sua morte, Dostoievski apresenta uma invenção tão grandiosa que a crítica não consegue defini-la até hoje. Os Irmãos Karamázov engloba de tudo: religião, psicologia, filosofia, moralidade, além da culpa, expiação e relacionamentos vividos por cada personagem... Ou seja tudo aquilo que está inerente ao comportamento humano.”
O mundo estilhaçado e a morte libertadora
LUIZ FELIPE PONDÉ
"SE DEUS não existe e a alma é mortal, tudo é permitido" é um enunciado profundamente racional. Não se trata do lamento de uma mente frágil. Os Karamazov são especialistas na pureza da razão teórica e prática.
Movimentam-se em direcção aos exageros da "função razão": o objetivo é fundamentar o mundo pela sua decomposição e posterior reconstrução conceitual abstrata. Só que eles não encontram esse fundamento. Ao contrário, percebem a realidade despedaçada do mundo. O "tudo é permitido" emerge dos estilhaços do mundo.
A razão de Ivan Karamazov (muito próxima da que o ceticismo e a sofística conhecem) percebe a vacuidade de qualquer imperativo ético universal: o mundo é estilhaçado pela liberdade que a morte nos garante. Sem Deus, perde-se a forma absoluta do juízo moral: estamos sós no universo como animais ferozes que babam enquanto vagam pelo deserto e contemplam a solidão dos elementos. A morte, que devolverá a humanidade ao pó, é o fundamento último do nosso direito cósmico ao gozo do mal.
 
Esse ciclo nos liberta da única forma verdadeira de responsabilidade, a infinita. A moral é mera convenção e não está escrita na poeira das estrelas. O filósofo Karamazov descreve o impasse ético por excelência: por trás do blablablá socioconstrutivista do respeito ao "outro", o niilismo ri da razão. Na crítica à teoria utilitarista do meio (social) em "Crime e Castigo", Dostoiévski já apontara o caráter "científico" da revolução niilista fundamentada nas ciências sociais: se tudo é construído, toda desconstrução é racionalmente permitida. Além de desconstruir, sabemos construir? O homem pode ser a forma do homem?
A modernidade achou que sim. Kant pensou que, com seu risível imperativo categórico, nos salvaria, fundando a racionalidade pura da moral. Conseguiu apenas a exclusão cotidiana de toda forma de homem possível. A miserável ética utilitarista (a ética do mundo possível), síntese da alma prática que só calcula, busca na universal obsessão humana pelo prazer a fundamentação de uma ética para homens, cuja forma universal são os merceeiros ingleses (Marx). O humanismo rousseauniano apostou na educação para a felicidade e virou auto-ajuda.
Contra a fé em Kant e na economia, Dostoiévski descreve nos "Demônios" a trindade que funda o projeto do homem pelo homem: o jovem melancólico sem subjetividade (Nicolai, o existencialista elegante), o pai e professor preguiçoso e "sensível" (Stiépan, o amante das modas revolucionárias em educação, poesia e ciência) e o filho niilista cínico (Piotr, o patrono dos jacobinos, dos marxistas e dos cientistas da economia prática, esses burocratas da violência).
Entender esse enredo como desespero de uma alma religiosa é senso comum banal. A banalização é um dos modos corriqueiros de a modernidade lidar com o que não conhece (e ela conhece muito pouco de tudo, mas é tagarela e ama o superficial, como diria Tocqueville). A falácia comum é a suposição de que o intelecto teológico necessariamente teme o sofrimento. O único medo em Dostoiévski é aquele mesmo de Cervantes: "O medo tem muitos olhos e vê coisas no subsolo". O erro de Nietzsche quando reduz a religião ao ressentimento se transformou em "papo cabeça".
O argumento dos Karamazov é um diagnóstico, não uma oração pela salvação do homem: o sentimento real de que deslizamos aceleradamente sobre fina casca de gelo mortal é prova sublime do seu caráter profético. A história aqui nos basta. Dostoiévski anuncia a comédia trágica daqueles que deixaram de acreditar em Deus e, por isso mesmo, passaram a acreditar em qualquer reforma barata.
Contrariamente ao que pensava a risível crítica moderna da religião, o contato com Deus fortalece o intelecto nas mais íntimas estruturas lógicas e práticas de sua natureza.
LUIZ FELIPE PONDÉ, filósofo.

Sem comentários: