Carla Furtado Ribeiro, "Justitia"

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JUSTITIA

De segredos te encerras, Deusa
De segredos te enovelas
De segredos te consomes
E acautelas…

De segredos te ocultas,
Pousando na cidadela
A sombra, apenas,
De mais densa luz
Que não desvelas…

De segredos te encerras, Deusa
Nocturna e sedutora,
Esfíngica e bela…
Sapiente sentinela,
Que na Tríade da Pólis
Se constela.

De segredos te encerras, Deusa...
De coração pétreo,
E enigmática,  austera,  selas
Com ordem, sublevação.
(Mas, eis que sepultas, então,
A lágrima que ocultas,
No aluir do teu íntimo perdão…)

Justiça! Justiça!
Quantos desenganos são....
Buscamos teus arcanos, mas em vão…
Pensamo-nos divinos, de humana condição…
Se, ao menos, em nosso palpitar profano,
Infundisses, da justiça divina, a humana cognição!…
Justiça! Justiça!
O teu perdão…
Pois Tu é que és Divina!
Mas, nós…não...

Carla Furtado Ribeiro, Inédito, 2010-10-16

Vergílio Ferreira, "A Verdade é Amor"


A verdade é amor — escrevi um dia. Porque toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pôde esquecer. É esse equilíbrio interno que diz ao pintor que tal azul ou vermelho estão certos na composição de um quadro. É o mesmo equilíbrio indizível que ao filósofo impõe a verdade para a sua filosofia. Porque a filosofia é um excesso da arte. Ela acrescenta em razões ou explicações o que lhe impôs esse equilíbrio, resolvido noutros num poema, num quadro ou noutra forma de se ser artista. Assim o que exprime o nosso equilíbrio interior, gerado no impensável ou impensado de nós, é um sentimento estético, um modo de sermos em sensibilidade, antes de o sermos em. razão ou mesmo em inteligência. Porque só se entende o que se entende connosco, ou seja, como no amor, quando se está «feito um para o outro». Só entra em harmonia connosco o que o nosso equilíbrio consente. E só o consente, se o amar.
Vergílio Ferreira, in "Pensar"

Fugir dos lugares da opressão, do vexame, do aplauso, do mínimo interesse exterior que fale em ti. E então saberás o que em ti é imperioso.
VF

Teixeira de Pascoaes, "Antiga Dor"



Teixeira de Pascoaes

O subtil, o reflexo, o vago, o indefinido,
Tudo o que o nosso olhar só vê por um momento
Tudo o que fica na Distância diluído,
Como num coração a voz do sentimento.
Tudo o que vive no lugar onde termina
Um amor, uma luz, uma canção, um grito,
A última onda duma fonte cristalina,
A última nebulosa etérea do Infinito...
Esse país aonde tudo principia
A ser névoa, a ser sombra ou vaga claridade,
Onde a noite se muda em clara luz do dia,
Onde o amor começa a ser saudade;
O longínquo lugar aonde o que é real
Principia a ser sonho, esperança, ilusão;
O lugar onde nasce a aurora do Ideal
E aonde a luz começa a ser escuridão...
A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor,
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Essa nuvem primeira, essa sombra d'outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!...

(de Sempre, 1898/1902)


Florbela Espanca, "Tortura"



Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento! ...

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento ...

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!




Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Tabacaria"



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Ao longe por mim oiço chamando a voz das coisas que eu sei amar. E de novo caminho para o mar.

Sophia de Mello Breyner Anderson

Sophia de Mello Breyner, "Cidade"

Night-City
Night-City by Stephen F. Soitos
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.


Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo Mal de te amar neste lugar de imperfeição Onde tudo nos quebra e emudece Onde tudo nos mente e nos separa.

Sophia de Mello Breyner Anderson

Marc Chagall, "Blue Lovers"
 






Fernando Pessoa, "Foi Um Momento"


Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há uma coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

A LUVA DE RICARDO

flor

Meu avô era poeta
Que enquanto escrevia, despia
A alma de desventuras…
Ao coldre tinha uma arma
Mas consta que
Não tinha armadura…
Por vezes sonhava sonhos
De gente simples, feliz…
Mas por dura cerviz
Foi proibido.
E em póstuma revolução
(E derradeira!)
Fez -se morrer rente ao chão
Em rasa simplicidade!
Meu avô… meu avô…
Era um poeta…
Que enquanto escrevia, despia
A alma de desventuras…
…E a herança de sua neta
Foi esta dor de poeta
Foi esta amarga doçura
E ainda a ausência que trago
Da sua ignota ternura.

Jorge Luis Borges, "Poema dos Dons"


Graças quero dar ao Divino
Labirinto dos efeitos e das causas
Pela diversidade das criaturas
Que formam este singular universo,
Pela razão, que não cessará de sonhar
Com um plano para o labirinto,
Pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulisses,
Pelo amor que nos deixa ver os outros
Tal como os vê a divindade,

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

       
Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugira das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente.
Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo aproveite bem o seu dia e pense que diariamente morre um pouco? É um erro imaginar que a morte está à nossa frente: grande parte dela já pertence ao passado, toda a nossa vida pretérita é já do domínio da morte!
Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-se passando.

Jesus, Joy of Man’s Desiring – J. S. Bach, by Celtic Woman



Jesus, joy of man's desiring
Holy wisdom, love most bright
Drawn by Thee, our souls aspiring
Soar to uncreated light
Word of God, our flesh that fashioned
With the fire of life impassioned
Striving still to truth unknown
Soaring, dying round Thy throne

Carla Furtado Ribeiro, Tema Original / "Cassiopeia" de Orlando de Carvalho


Quando os cutelos de sombra
abordarem a planície
se te vierem dizer que eu te disse
que aquela flor lanceolada não resiste
como uma estrela fechada
como uma noiva deitada
à espera da madrugada mais verdadeira que existe
se te vierem dizer não olhes a cassiopeia
mas deita-te meu amor
na ponta de cada veia
e encosta o rosto na terra
que a lua fria incendeia
silva encostada ao silêncio
ouvindo a sombra do vento
sobre a areia
sobre a areia
sobre a areia…

Dostoiévski – "Os Irmãos Karamazov"

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Uma análise de Dostoyevsky a partir de “Os Irmãos Karamazov”:
“"Os Irmãos Karamázov" é o último livro de Fiódor Dostoiévski, sendo considerado por muitos críticos e leitores a melhor dentre todas as suas obras. Publicado em 1880, sendo finalizado apenas pouco antes de sua morte, Dostoievski apresenta uma invenção tão grandiosa que a crítica não consegue defini-la até hoje. Os Irmãos Karamázov engloba de tudo: religião, psicologia, filosofia, moralidade, além da culpa, expiação e relacionamentos vividos por cada personagem... Ou seja tudo aquilo que está inerente ao comportamento humano.”
O mundo estilhaçado e a morte libertadora
LUIZ FELIPE PONDÉ
"SE DEUS não existe e a alma é mortal, tudo é permitido" é um enunciado profundamente racional. Não se trata do lamento de uma mente frágil. Os Karamazov são especialistas na pureza da razão teórica e prática.

Herman Hesse, "Quanto mais envelhecia..."

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Quanto mais envelhecia, quanto mais insípidas me pareciam as pequenas satisfações que a vida me dava, tanto mais claramente compreendia onde deveria procurar a fonte das alegrias da vida.
Aprendi que ser amado não é nada, enquanto amar é tudo.
O dinheiro não era nada, o poder não era nada. Vi tanta gente que tinha dinheiro e poder, e mesmo assim era infeliz.
A beleza não era nada. Vi homens e mulheres belos, infelizes, apesar de sua beleza.
Também a saúde não contava tanto assim. Cada um tem a saúde que sente.
Havia doentes cheios de vontade de viver e havia sadios que definhavam angustiados pelo medo de sofrer.
A felicidade é amor, só isto. Feliz é quem sabe amar.
Feliz é quem pode amar muito. Mas amar e desejar não é a mesma coisa. O amor é o desejo que atingiu a sabedoria. O amor não quer possuir. O amor quer somente amar…

Carla Furtado Ribeiro, Tema Original, "Estória de Silêncio"/"Aldeia", Poema, Música e Voz



A minha aldeia é uma estória de silêncio
Solene, hierático, intenso
Ora altivo, ora raro, ora denso
De que as coisas se pressentem povoadas

Um silêncio de brisas transpiradas
Pelos corpos de chão, de terra, de semente
E de tudo o que no homem faz presente
O mistério das coisas insondável

A aldeia é rua de memórias apeadas
Bordadas a vidrilhos de luar
Um jardim de angemas perfumadas
De um perfume impossível de expressar

São memórias e visões revisitadas
Em cada espiga, em cada tronco,
em cada olhar de desfolhada
Que nos fere de emoção aldeia amada
Que nos deixa o coração a soluçar


Carla Furtado Ribeiro, Tema Original, "Ondular" / "Poema para uma Canção", Poema, Música e Voz



O teu rosto adormecido sobre o meu
As tuas mãos abandonadas sobre mim
E nos meus olhos a beleza dos caminhos
Que juntos vamos caminhando até ao fim.

Estrelas ardentes flutuam no meu peito
Sinto-me noite, uma noite funda assim
Como a corrente de água limpa que transborda
Dessa nascente cristalina que há em ti

Ah! À nossa beira, amor, cresceram flores
Plantadas pelas nossas próprias mãos
O teu corpo de homem novo semeou
O que na minha terra fértil se fez pão

Sibilante a aurora nasce tão quieta
Traz o cheiro e a frescura dos começos
Como tu ao acordar trazes gaivotas
Assinalando tempestade em mares incertos

No teu perfil desenham-se as paisagens
Dos montes, das serras, dos altares
E de todas as coisas altas, fortes e eternas
Com que imprimes de saudade o meu olhar

Ah! À nossa beira, amor, cresceram mares
Veludo azul, azul de navegar
Correntes livres serenando imensidades
Sob o teu rosto no meu rosto a ondular

e.e.cummnings, poemas

e.e.cummings, auto-retrato
Sonetos/Irrealidades

pode não ser sempre assim – digo: e se
seus lábios que tanto amo tocarem
outros lábios
e seus dedos tão queridos
forte comprimirem outro coração
– como o meu, num tempo não distante
se a pele de outro rosto, macios seus pelos
roçarem
num silêncio que bem sei ou
ao som de palavras contorcidas
– em voltas, volutas, rodopios –
desamparadas à face do mar
se assim for – digo: se
assim for – amor,
conta-me em breves palavras
que voarei até ele
para – mãos dadas – dizer:
aceita toda esta alegria
que te dou
e voltando meu rosto hei de ouvir
um canto
de pássaro na distância
infinita das terras perdidas

Tradução: Johnatan Lira 


Chamar a Si Todo o Céu com um Sorriso

que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas 
aves que são os segredos da vida 
o que quer que cantem é melhor do que conhecer 
e se os homens não as ouvem estão velhos 

que o meu pensamento caminhe pelo faminto 
e destemido e sedento e servil 
e mesmo que seja domingo que eu me engane 
pois sempre que os homens têm razão não são jovens 

e que eu não faça nada de útil 
e te ame muito mais do que verdadeiramente 
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse 
chamar a si todo o céu com um sorriso 

E. E. Cummings, in "livrodepoemas" 
Tradução de Cecília Rego Pinheiro

Chico Buarque de Hollanda, "Sonhar"

65BAD5~1

Sonhar…
Mas um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão.

Florbela Espanca, "Longe"

Imagem0011(Fotografia: C.F.)


Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
*
Florbela Espanca

Cassiopeia... (Entre o Direito e a Poesia )


Num certo dia (corria o ano de 1996…)  dirigi-me à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra em busca de uma obra da autoria do Senhor Professor Doutor Orlando de Carvalho, quando, a dada altura, me deparo alegremente com uma sua obra poética. Um poema, em particular, fascinou-me a ponto de o musicar… tendo-o preservado até hoje como uma preciosidade  que agora publico para que outros dela possam também desfrutar. Na convicção, porém, de que o poema, bem como a ilustre pessoa do seu autor, mereceriam sempre melhor…
Eis o Poema:
Quando os cutelos de sombra
Abordarem a planície
Se te vierem dizer
Que eu te disse
Que eu te disse
Que aquela flor lanceolada
Não resiste
Não resiste
Como uma estrela fechada
Como uma noiva deitada
À espera da madrugada
Mais verdadeira que existe
Se te vierem dizer
Não olhes a cassiopeia
Mas deita-te meu amor
Na ponta de cada veia
E encosta o rosto na terra
Que a lua fria incendeia
Silva encostada ao silencio
Ouvindo a sombra do vento
Sobre a areia
Sobre a areia
Sobre a areia

Eis a composiçao: