As palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.

Etty Hillesum


Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner.
E de repente fiquei a saber:
é assim que eu quero escrever.
Com um espaço imenso à volta das palavras.
Detesto muitas palavras.
Quereria escrever somente palavras
organicamente inseridas num grande silêncio,


daquelas cuja única utilidade
é dominar o silêncio e rasgá-lo.
Na realidade
as palavras devem acentuar o silêncio,
tal como naquela gravura japonesa
com o ramo florido para baixo,
para o canto.
Umas tênues pinceladas
 — mas com que olho para reproduzir
o mais pequeno pormenor — e,
à volta delas, o grande espaço,
 mas não um espaço representando um vazio,
mas sim, digamos, um espaço com alma.
Detesto uma acumulação de palavras.
Na realidade pode usar-se poucas palavras
para nomear as grandes coisas que importam na vida.
Se algum dia chegar a escrever —
o quê, sinceramente?
— gostaria então de pincelar algumas palavras
sobre um fundo mudo.
E há-de ser mais difícil de reproduzir
e animar esse silêncio
e essa mudez do que achar as palavras.
O importante será a relação justa
entre palavras e silêncio,
um silêncio no qual acontece
mais do que em todas as palavras
que uma pessoa consiga reunir.
E em cada novela
 — ou seja lá aquilo que for —
o fundo em silêncio terá de ter um matiz
e um conteúdo diferentes,
exatamente como acontece nas gravuras japonesas.
Não se trata de um silêncio vago e inatingível,
esse silêncio terá também de ter
os seus próprios contornos definidos
e a sua própria forma.
E, por conseguinte,
as palavras deveriam servir somente
para dar forma e delineação ao silêncio.
E cada palavra é como um pequeno marco
ou um pequeno relevo
ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos,
e vastas planícies.


In Diário 1941-1943, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009, colecção Teofanias.~

...

Sou obrigada
a aclamar-te continuamente,
meu Deus:
estou-te muitíssimo grata
por teres querido dar-me esta vida.

Uma alma é algo feito
de fogo e cristal de rocha.
É algo muito severo
e com a dureza do Antigo Testamento,
mas também tão suave como o gesto
com que suas cautelosas pontas dos dedos
afagam as minhas pestanas.

In  Diário 1941-1943. 12-10-42, segunda-feira

...
Ó Deus, toma-me na tua grande mão
e torna-me o teu instrumento,
faz-me escrever.

In Diário 1941-1943 04.07.1941, sexta-feira.

Sem comentários: