Exegese Literária acerca do livro de poesia “Em Silêncio”, por Doutor Martinho Soares.


Exegese Literária acerca do livro de poesia “Em Silêncio” de Carla Furtado Ribeiro, Chiado Editora, Lisboa, 2013.

Dizer muito com poucas palavras é próprio da poesia. A estratégia poética reside, em grande medida, no poder de síntese, na capacidade de concentrar num símbolo verbal um feixe de sentidos, na mestria com se reveste de opacidade e ambiguidade, abrindo ao leitor múltiplas vias de sentido. Tudo isto contribui para que a poesia lírica resulte parca nos significantes e prolixa nos significados. E é porque ela é por natureza mais implícita do que explícita, que o poema procura mais sugerir do que definir, implicar do que explicar. Implica o leitor: o seu campo de experiências e o seu horizonte de expetativas, a sua cultura sedimentada e o seu dinamismo interpretativo. A poesia, como resultado da perceção e contemplação do quase invisível e do universal, oculto no sensível e no particular, não pode ser ostensiva: a sua polpa guarda o mistério, o quase indizível, o âmago dos seres e das circunstâncias. Eis porque o silêncio devém matéria matricial dos poemas. Basta olharmos para a poesia portuguesa contemporânea para percebermos um certo fascínio pelo tema; muitas vezes apresentado em tons disfóricos, com traços de ceticismo, mutismo, descrença, se não mesmo de indiferença e neutralidade. Não assim o silêncio entre parêntesis retos da Carla Furtado Ribeiro. Dentro dos parêntesis retos germina um silêncio criativo e criador, ativo e meditativo, em cujas margens se propicia a palavra poética que a autora cultiva com primorosa paixão e acrisolada sensibilidade estética.
Em silêncio é o título que marca a estreia fulgurante e muito promissora desta jovem poetisa, que é simultaneamente mulher de letras e de leis.

Mulher em quem desde cedo despontou o dom poético; facto comprovável no primeiro poema, escrito em 1991, com apenas treze anos de idade, e que o pudor artístico deixou engavetado e adiado até agora. Nessa belíssima composição, exprimia o seu encantamento pela Arte por modos notavelmente auspiciosos e de uma maturidade intelectual precoce, como se pode comprovar nos seguintes versos:
No trono da minh’alma se eleva…
Sob o ceptro do seu encantamento repouso…
E na infinitude desse olhar dilacerante,
Embevecida me detenho:
- És Arte!
Sou diletante.

Toda a atividade poética posterior a este “batismo atónito”, para usar uma expressão de Herberto Helder, se processou em silêncio e discrição, até ao momento recente em que a poetisa decidiu abrir, usando palavras suas, a flor da poesia, como se pode ler num poema de cariz autobiográfico e metapoético:
Morriam os poemas dentro de mim
Como estrelas caídas no íntimo da noite
E eu – perfume crepuscular – era assim
Como a nudez sagrada de um altar
Despido e despojado preambular
Da provocadora simplicidade de Deus
Morriam os poemas nasciam os silêncios
Como pétalas adiadas da flor da poesia
Que em mim morria
[…]

Na mesma linha segue o poema em tons de prefácio que serve de pórtico à obra:
Brotam de mim palavras adiadas
Que eu preciso de soltar e à vida dar
Livres fossem as palavras
Que de mim vou apartar
Como garças
Que voassem
Da minh’alma
A plissar

Palavras que no poema seguinte são graciosamente comparadas a flores:
Como flores se abrem
as palavras ao sol
e ao esvaecer se fecham
reclinando seus acentos de pétalas.

Pois bem, é este silêncio criativo, emoldurado em parêntesis retos, que hoje aqui queremos quebrar, para que a entrada desta excecional poetisa no meio artístico português seja mais eloquente e a sua poesia menos silente. Estes longos anos de casulo, antes de trazer os seus versos à luz do dia, foram tempo de maturação psicológica e intelectual, tempo de inculturação e de aperfeiçoamento da técnica, de modo que o primeiro livro de poesia que Carla Furtado Ribeiro aqui nos apresenta revela uma autora madura, culta, detentora de um notável estro e de um sentido estético-poético extremamente apurado. A sua obra impressiona pela suavidade e pela luminosidade, num tempo em que a alma poética tende para cromatismos mais carrancudos e formas disformes. Há um efetivo prazer em ler esta poesia, que se retira da musicalidade encantatória dos versos, das harmoniosas e engenhosas alquimias rítmicas, fónicas, semânticas e lexicais, das surpreendentes nervosidades metafóricas, da primorosa seleção vocabular, da profundidade e complexidade das ideias, do fulgor e limpidez das texturas cromáticas. Uma poesia enxuta e solar, que prende o real e nos prende. A escrita, embora capciosa, como convém ao artifício poético, é fluida, dúctil, grácil, a cavalo entre a tradição e a inovação: quer bebendo na herança poética de um Almeida Garrett, de um Fernando Pessoa, de uma Sophia de Melo Breyner, de um Rui Belo, ou mesmo de um Herberto Helder, quer instaurando com consistência um modo idiossincrásico e uma marca autoral genuína e convincente. Podemos dizer que a sua poesia é leve, mas nunca ligeira. Leve na palavra, leve na estrutura, leve no movimento, mas densa e bem assente em ideias de timbre existencial, metapoético e espiritual.
O silêncio, como tema mais glosado, recebe honras de título e de epígrafe. Surge em consonância com a noite, esse tempo que já em Álvaro de Campos era oportuno para a escrita. Para Carla Ribeiro é também tempo de súplica, como se depreende dos seguintes versos:
Sobre o silêncio côncavo da noite…
Em que as “coisas” se revelam
Originais e despojadas
Deslumbrando vocábulos em sílabas de súplica:

- Que uma só palavra cristalize
Intacta a sua essência.

Noutro lugar, o silêncio é apresentado como berço das palavras:
As palavras mergulham
No silêncio o seu sentido
[…]
Que seria da palavra
Sem o seu berço de silêncio?

Noutros passos, há ainda o silêncio das manhãs enfeitiçadas por luz; ou o silêncio dos nenúfares a vogar, onde se expressa a íntima comunhão deste com a beleza, ambos selados pela inefabilidade de que a poesia se alimenta: Não vês que eu não tenho respostas?/ Por isso me nutro de beleza e silêncio. Três poemas versam integralmente sobre a mesma temática. Num soneto, cujo título, é simplesmente Silêncio, o sujeito poético adota um tom confessional para nos descrever o ambiente da génese poética e da busca da flor mais fina do silêncio, identificado com o Omnisciente, aquele em quem correm seivas invisíveis e nos braços de quem o sujeito poético se deleita, no silêncio dos dias imperfeito.
Na composição Nem todos os silêncios, especifica-o, separando-o de outros, porventura mais comuns e menos positivos:
Nem todos os silêncios são de esperas
Há silêncios taciturnos e de feras perscrutadoras
Há silêncios de censura e repressão
Há silêncios que calam a desdita
Há silêncios de pena e de traição

Mas, eu amo o silêncio em gestação
De tudo o que é tecido em mansidão
De arte transbordante, e de oração
[…]
Amo o silêncio que invita à jornada
Da busca da humana e única palavra
Que diga tudo quanto há para se dizer

Essa palavra essencial e despojada
– a Magna palavra –
Com a qual se traduza todo o Ser

Por fim, Em silêncio, o poema que fecha a obra e a abre ao mundo; um desfecho conciso, para expressar o silencioso apaziguamento, depois de cumprida a buliçosa missão poética:

Em silêncio tudo está pacificado.
Só o vento,
De folha em folha deambula,
Como um anjo alado…

Sejamos nós, leitores, estes anjos alados deambulando de página em página, sorvendo o néctar poético que preenche as páginas deste livro. Essa é a nossa forma de voarmos ao lado da poetisa, que a si mesma se compara à ave que se alça em voos poéticos: Nos ninhos solitários / Dos humanos pássaros/ Sempre uma cria /Alçará o seu voo; unidos a ela na missão que a mesma outorga à poesia: resistir em silêncio à pravidade do metal, à novela das sete, ao reality show das vinte e uma, restituindo ao mundo a desprezada ciência; lutando, a seu lado, contra a sedutora vulgaridade que infeta o homem prosaico, título de um delicioso sarcasmo poético, que ousamos transcrever na íntegra:

O riso ternura dos teus lábios aceno
O perfume cristal do teu pescoço gazela
O cálice tempo que a tua força sustenta
Por sobre a mesa

A face branca do teu rosto luar
O vibrar filigrana do teu olhar crepúsculo
A gravata atadura que o teu colarinho prende
Sobre a camisa
           
            O movimento distinto dos teus ossos alabastro
            A cadência musical da tua respiração pássaro
            Os botões de punho ouro com que distingues
A tua prosaica existência

O domesticado ondulante do teu cabelo mar
A ajeitada selva da tua barba amazónia
O aftershave subjecticida, auto-repelente com que abafas
A tua identidade

O sonho defraudado da tua juventude bandeira
A lágrima chuva dos teus olhos céu
O coração puído que te recorda a distância
De ti próprio

Inúmeras rotas hermenêuticas ficam por seguir, de página em página, descortinando os veios por onde flui a inexaurível seiva poética de Carla Furtado Ribeiro. Infelizmente, o imperioso tempo suspende-nos. O leitor que se aventurar por estas páginas encontrará muitos outros fios temáticos. Sejam reflexões sobre a própria construção poética:
De palavras me visto
de poemas me invento;

e sobre o valor da poesia, comparada amiúde ao ouro:
Desperta desse frio de ternura
E renasce de candura
… existir é brando
…viver é puro
E eu sou
A que no mundo
Transfiguro
O pó de nada ser
No ouro precioso
Das manhãs

sejam reflexões de caráter existencial, como o fluir inexorável mas ilusório do tempo:
não ver senão
o tempo fluir
a enganar
a vida na ilusão
de que o tempo passa
quando o certo, certo
é que és tu
amor
o ser que passa…
não a vida
 jamais a vida
a vida não…
 ou, noutro lugar:
Sucedem-se os dias como colinas áridas
no desafio da exaustiva caminhada
Não te deixes erodir pela corrosão do vento,
Pois nem o tempo ilude a eternidade
[…]
Tu é que passas pelo tempo e não o tempo que passa…
e ainda:
Em cada ser
existe um rosto parado contra o tempo
rosto que procura esquecimento
seja o tema do amor, tratado com uma elevação e um equilíbrio difícil de alcançar, evitando quer o sentimentalismo patético quer o racionalismo  apático. Tomemos como exemplo um excerto:
O teu rosto adormecido sobre o meu
As tuas mãos abandonadas sobre mim
E nos meus olhos a beleza dos caminhos
Que juntos vamos caminhando até ao fim.

Estrelas ardentes flutuam no meu peito
Sinto-me noite, uma noite funda assim
Como a corrente de água limpa que transborda
Dessa nascente cristalina que há em ti.

Ah! À nossa beira amor cresceram flores
Plantadas pelas nossas próprias mãos
O teu rosto de homem novo semeou
O que na minha lua fértil se fez pão.

Transversal a toda a obra, a presença de Deus, não apenas no tom orante de certos poemas, mas também na herança rítmica própria de cadências salmódicas, como se pode sentir nos seguintes exemplos:
            Ele       contempla o meu mistério
Eu para            ele      não sou uma aparência
Sou uma aparição
Ele       vê-me na neblina difusa
Que emana do mais puro de mim
Ele        dobra-se para me ver
Como quem encosta o rosto
À terra para entender
E deixa-se penetrar
Pelo meu olhar
Compenetrante
Ele        faz-me sentir olhada
Na representação simbólica de mim
E é por isso, penso,
Que me nascem
Vontades incontidas
De lhe falar
De coisas
Belas
assim
           

No segundo exemplo, que agora apresentamos, Deus é visto como a suprema poesia, uma poesia capaz de nos abrir à eterna novidade do mundo.

Meu Deus, onde estás?

           Pergunto e, de súbito,
           Das entranhas da terra,
           Nasces em respostas,
E um vento intempestivo
Brande todo o ar da terra.
Sempre sei onde estás…
No fluir das gotas de orvalho
Que telintam pelas heras vicejantes
Em melífluas manhãs de Primavera…
Na dureza das pedras, feridas de musgo,
De verde ensanguentadas…
No lazúli do céu em gloriosos dias de sol…
No templo de comunhão do círculo de vida…
Como não te ver? Como não te tocar?
Se estás entranhado no mundo (como na minha alma…)
Quando eu morrer, sobrevive-me.
E que os Homens, tal como a noite, o dia, a manhã, os desertos,
Os mares, as essências elementares – ar, terra, água, fogo –
Jamais Te esqueçam.
E que sejam para sempre iluminados
Pela suprema poesia de existires.



Concluímos esta apresentação com um dos três poemas que deste livro foram selecionados para uma Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea, facto só por si bastante revelador da inegável qualidade poética da autora. Falamos do admirável Tu minha árvore sem nome, o qual encerra em si a quintessência de todas as qualidades cromáticas, fónicas (atente-se à aliteração), rítmicas e semânticas que atribuímos à obra de Carla Furtado Ribeiro. 

Tu
minha árvore sem nome, história sem tempo
meu leito de abandono e deserção, 
Raiz
Adventícia da esplendorosa Primavera em gestação. 
Folha
seminal, trifoliada, oval, orbicular, lobada,
folha de ouro, herança de à terra vinculada. 
Âmago
de todas as luminescências que me habitam
crepúsculos incandescentes, impossíveis que me invitam.
mas, tu, agora gota, agora água, agora arco-íris diluído em mágoa, 
agora água-régia que embriaga e dissolve em aquarelísticas imagens 
esta paz cruciforme das paisagens.
Recantos
de pureza inesperada, são teu berço, teu braço, 
teu insólito regaço, meu céu debutante e sem cansaço.

Oh natureza curvilínea,
de cíclicos e solenes retornos sobre a terra! 
Só tu,
sempre estas águas, mansamente debruçadas
sobre minhas esquivas margens escarpadas…

Coimbra, 25 de Outubro de 2013

Martinho Tomé Martins Soares
Mestre e Doutorado em Poética e Hermenêutica
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
   Investigador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e 
Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa



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